quarta-feira, 28 de maio de 2014

Flat

Gosto de sentir o coração encostando na boca.
O sangue trotando pelo corpo, fervendo na pele.
Gosto da tensão que precede a chuva, a morte que causa um trovão.
O quase mergulho no abismo da não ideia.
Gosto do outro lado do muro. Não importa qual.
Sempre gostei dos subsolos, de descer a ladeira e encontrar uma paisagem desconhecida na volta.
Não suporto a zona de conforto com seu controle sempre remoto. Quentinha, aconchegante, sem nenhum conflito me tirando o sossego.
Me afogo no raso.
No mar sem ondas.
Na vida coreografada.
Cultivo borboletas.
Frequento abismos.
Troco de pele todo dia.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

coisa de pele


O assunto começou quando ela puxou a pelinha do lado de dedo, aquelas que ficam levantadas avisando a gente que está passando da hora de fazer as unhas.
É impressionante como está sempre na hora de alguma coisa. De se cuidar, de encarar o regime, de dar um basta no emprego ou naquele caso que se prorroga há anos e não marca um gol. A gente tem que ser mulher, mãe, amiga, namorada, amante, esposa, dona de casa, estar com o cabelo e a unha impecáveis a ponto de não ter nenhuma pelinha levantando e gritando com a gente.
Então ela puxou com cuidado porque sabia que aquilo doía e era uma operação de risco. Mas não adiantou. Logo veio o sangue para lembrar que as mulheres sangram mesmo, muitas vezes bem mais do que uma única vez por mês.
E a pelinha que levou ao sangue que a fez lembrar do seu período fértil trouxe ele de volta. E ela estava ali dando uma volta em si mesma quando soltou, do nada, no meio do almoço em um bar qualquer, com o campeonato italiano correndo solto na tela: “ o segredo de tudo é a pele.”
De repente todo mundo parou, o copo ficou entre a boca e o susto, as meninas se olharam, os homens olharam pro lado e depois pra tela e ela ficou com o dedo ainda na boca, tentando disfarçar o que a memória já tinha causado nos pelos arrepiados do braço.
Eles voltaram para o jogo e ela não tinha como fugir do que disse. As vezes é assim que acontece. No meio do nada, uma palavra do nada, num lugar que nem serve de moldura pra cena. Mas você está ali por inteiro em suas memórias e elas ganham vida e se transformam em prosa.
E foi ali mesmo, naquela mesa ao som do futebol, que ela contou a sua história de pele. De como tinham se conhecido, de como tinham se encontrado no meio da sala ao som de um forró. Ela que não gostava de forró e ele que não sabia dançar.
Do toque imediato que resultou numa dança ritmada e sensual.
De como os rostos se encontraram, os olhos disseram sim e em menos de 5 minutos se agarravam na dispensa criando uma festa única e particular.
De como amanheceu e eles nem perceberam. De como passaram-se 3 meses e eles continuavam dançando.
De como viviam nú um para o outro, vestidos de pele e sensações.
Ela cercada de olhos curiosos, revivendo cada passo desde aquela noite.
Contando os detalhes porque eram neles que ela morava.
De como a partir daquele dia passou a cuidar melhor da sua pele porque ela era capaz de milagres.
Todas elas sabiam do que a amiga estava contando.
Todas sabiam exatamente que era assim
Uma história massageando outra.
Porque, as vezes, ela só precisa de um narrador para acontecer de novo.
Ou de uma pelinha levantada que nos leve até la.




segunda-feira, 19 de maio de 2014

descartáveis



Ficou na borda o batom que inspirou a música.
O restinho do recheio do bolo de chocolate que pôs fim à promessa.
Ficaram cheios do resto que preencheu a noite.
Empilhados em um cantinho qualquer esperando sua nova vez.
Transparentes, opacos, estampados do outro.
Nasceram descartáveis e assim eram.
Duravam o tempo de uma festa.
Estavam com o tempo contado. Sempre foi assim.
Mas não pra ela, que nunca tinha se visto nessa (e dessa) posição.
Ela que estava acostumada ao bem querer e ao bem se ter.
Ela que falava olhando nos olhos, que sorria com as mãos que apertavam outras em um abraço de dedos.
A menina que não economizava palavras, gestos e nem emoções.
A menina que não se economizava.
Que não era de plástico e nunca tinha estado neste papel,
se sentiu descartável.
Vazia.
Tentou se empilhar como os outros.
Mas não conseguiu.
Ela que não cabia em si não caberia ali.
Continuava acreditando nas palavras, nos olhares, no cuidado.
No calor de um encontro.
Na vida acontecendo ao vivo.
A menina que não se economizava precisava de mais. Bem mais.
Recolheu os copos, juntou os pratinhos e foi ser festa em outro lugar.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Conversa de palavras


De repente estavam de mãos dadas falando sobre a vida e sobre o acaso.
Se conheciam o tempo de uma história bem contada.
Versos calmos entremeados por acordes densos.
De repente a conversa virou silêncio e tudo fez sentido.
As palavras se perderam uma das outras e foram se acomodar nas entrelinhas.
Que ganharam voz.
Quem passasse por ali ouviria. Com certeza.
De repente, o silêncio virou festa acontecendo dentro de cada um.
Virou brinde, virou do avesso.
E se alinhavaram procurando um tamanho que os coubesse.
E ainda no silêncio, ela pensou que é no de repente que moravam as melhores surpresas.
Recuperou a voz, encontraram o prumo.
E viraram repentistas de si mesmos.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

terça-feira, 6 de maio de 2014

sobre pessoas


As vezes me pego olhando para fora, descrevendo as pessoas que me cruzam os caminhos.
Gosto de analisá-las pela forma de andar, de falar, de olhar. O vestir não faz parte da minha observação. Deixo este ponto à mercê da moda. Ao meu ver, o vestir define um momento, não a essência. E aqui estamos falando de ser e não do estar, certo?
Mas minha análise não é aquela de terapeuta tentando encontrar o ápice do fim de uma sessão.
Não, não.
Minha análise é quase visceral.
Eu gosto de gente. Sempre disse isso.
E gosto da diversidade.
Amo o olhar desafiador de quem é de exclamação. Dos que são intensos e estão sempre prontos para o abismo. Não importa de qual jeito voltarão para a superfície.
Me acalmo com quem é de reticências. Dos que deslizam sobre a vida sem se preocupar com as decisões. Dos que se entregam ao momento como quem degusta uma boa taça de vinho.
Já os de interrogação não me causam mistério. A insegurança até tem o seu charme mas, em excesso, me engorda a frustração. Isso é um veneno para quem vive de dieta. Você bem sabe, eu sei. Detox neles.
Gente ponto final não nos dá chance de novas descobertas. É o senhor da razão e não é lá muito chegado ao diálogo. Esses, eu só escuto.
Gente virgula. Já conheceu alguém assim? Eu já. Você também, é só reparar. São ansiosos, atropelados, desajeitados. Mas total do bem. É só cobrança em acertar, sempre. E acabam errando bem no lugar da vírgula. Um horror para os entendidos do assunto. Uma alegria para os que são parênteses na vida.
Tem também os que são aspas. Grudam na opinião do outro e só largam quando encontram outra melhor.
Os de travessão vivem mais na infância. Adoram entrar de supetão no assunto do outro sem nem esperar pela sua vez. Se bem que tem muita gente dessa espécie por aí. E sabe onde eles mais aparecem? Nas salas de reunião. Bote reparo você também.
Gosto de observar porque assim consigo me enxergar melhor.
Sou um pouco de exclamação, de interrogação, de ponto final.
Já fui mais travessão, mas aprendi com os de reticências a pensar melhor.
E hoje, ando fazendo as pazes com as minhas aspas.


segunda-feira, 5 de maio de 2014

Inventividade


Eu invento histórias e crio novos personagens.
Desenho sonhos antes de dormir e acordo vivendo outros.
Chego para trabalhar em um novo emprego, mesmo estando há anos no mesmo. Por que não? Isso é ótimo para um segunda-feira pós feriado. Recomendo.
Finjo que estou em outro país e falo a língua que parece combinar mais com o momento. Invento outras com fonemas difíceis só para parecer que sou fluente em me entender.
Já fui francesa, escritora de sucesso e voltei a ser criança.
Tudo em um só dia.
Já tirei todas as roupas do armário e dobrei em cima da cama, fingindo ser vendedora de loja.
Já fui aeromoça de 2 passageiros em um avião que voava com a força do pensamento.
Medica já fui algumas vezes. Psicóloga também.
Dei alta para pacientes imaginários e resolvi questões de vida em uma só consulta.
Fui homem só para conhecer o outro lado do banheiro, mas achei que ser mulher me veste melhor.
Já mordi a parte de dentro da bochecha e fiquei falando assim por alguns minutos só pra ver como seria.
Inventei que não gostava de chocolate, de sorvete e nem de manga pra ficar mais magra.
Voltei a amar chocolate e sorvete. Mas de manga continuei não gostando. Virou verdade, vai saber.
Invento palavras.
Sou o que gostaria de ter sido, volto atrás em escolhas que não fiz.
Experimento o caminho que nunca segui.
Vivo imaginando os “e ses” que todo mundo pensa.
Isso diminui um pouco a curiosidade da escolha. Mas o olhar é sempre o mesmo de quem decidiu pelo outro caminho.
Invento, imagino, vivo.
E,ao final do dia e dos sonhos, volto para mim.
É aqui que me sou por inteira.