terça-feira, 29 de abril de 2014

As primeiras palavras


Elas tinham se visto uma vez.
Mas a palavra de uma nunca tinha grudado na de outra e virado assunto.
Só os olhares se cruzaram e seguiram em frente.
Até que uma se doeu com a dor da outra e juntas passaram a ser só sentimentos.
As palavras se encontraram em uma infância tardia e formaram versos cheios de diálogos e melodias.
Combinavam em rimas e em gostos.
Descobriram afinidades e riram com os olhos.
Tartar de atum com batata portuguesa.
Corações azuis.
Amo corações azuis.
Rosa com vermelho.
Lindo.
Observar.
Tão bom observar.
Escrever a falar.
Batom vermelho.
Uma taça de vinho.
Acender velas para rezar.
Se iluminar.
Escrever e chorar.
Elas não se economizavam.
Não se intimidavam.
Eram femininas.
Dançavam ballet com os dedos.
Escreviam para passar. Para assentar.
As duas vieram de fora.
Quente, frio.
Loira, morena.
Mignon, picanha.
Uma amizade escrita a quatro mãos.
LuciAnna.



O que vem antes?


Eu gosto do que vem antes.
A ansiedade que antecede uma viagem.
As preposições e os prefixos.
Gosto de esperar pela festa.
Da descoberta do inesperado.
Da dúvida do desconhecido.
O antes vem cheio de expectativa. E, como ainda não aconteceu, não traz consigo a força de uma frustração.
O antes tem poesia.
Tem inocência.
Contém uma pitada de essência.
Gosto do antes de acontecer.
Do segundo que antecede o se jogar na vida.
Do frio na barriga.
Ah, o frio na barriga.
É o momento em que a gente se vê nu. É quando você se veste de pele e se basta.
O antes preenche.
Inventa histórias.
Conta outras.
É o ponto de partida.
E, algumas vezes, o de chegada.
Cabe tudo no antes.
Um instante.
Ou a vida inteira.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Um dia de outono


O dia amanheceu frio. Mas ventava forte dentro dela.
Talvez fosse o movimento das borboletas que insistiam em bater suas asas.
Talvez algo inesperado, prestes à acontecer.
O outono sempre causava reações desordenadas nela.
Um frio que a alimentava mas que, de tão sólido, se degustava de garfo e faca.
Sim, também tinha a fumaça que deixava tudo a lá Monet naquele dia.
Ela gostava de Monet.
E também do outono.
Da fumaça, gostava só da sensação do quase não enxergar.
As vezes é preciso fechar os olhos e só sentir.
O frio. Sim, tinha o frio que insistia em tremer seus sentidos.
O que fazer com as borboletas?
Passou a observar a coreografia do bater de suas asas.
E um papo bom serviu de trilha.
Um cachecol de palavras aquecendo os movimentos.
Se envolveu nos assuntos que teciam aquele começo de tarde e se sentiu aquecida.
Talvez pelo bater das asas.
Talvez pelo dialogo.
Fazia frio lá fora.
E bem lá dentro, a temperatura subia.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O meu inglês foi viver fora de mim


Falo inglês como quem procura letras no teclado.
Pequenos encontros sonoros. Reações químicas que provocam significados.
Falo inglês como quem tira uma musica de ouvido no piano.
Frase a frase vou construindo a minha melodia.
No meu tempo.
Com o meu respiro.
As palavras têm tradução simultânea dentro de mim.
E gosto da maneira como elas se combinam quando eu escrevo.
Falando é diferente.
Elas se perdem, se enroscam, procuram abrigo.
As minhas palavras não têm voz.
Sobrevivem de texturas.
De toques.
O meu inglês foi viver fora.
E levou o meu português junto.
Lá eles se entendem.
Ou convivem bem com o silêncio de cada um.
Por aqui, fico com as palavras que reverberam dentro de cada um.
Nesta língua eu sou fluente.
E tenho voz.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

sem digital


Ela não tinha smartphone.
Facebook só com a senha dos outros.
Também não tinha instagram. Aliás, sua vida não tinha filtro nenhum.
Imprimia textos de blog para ler como revista.
Não sabia das coisas que aconteciam no mundo. Mas entendia como ninguém o mundo de cada um.
Celular era pra ligar.
Era do tipo que ainda mandava recados e não mensagens.
Também era boa em analogias.
Devia ser o reflexo de sua vida quase nada digital.
Twitter nem sabia pronunciar.
Skype pra ela mais parecia nome de refrigerante.
E e-mail, bom, esse ela teve que dominar.
Ferramenta de trabalho, sabe como é, ne?
Preferia o encontro ao chat.
A emoção de ver a vida acontecendo ao vivo.
E naquele dia, combinaram por e-mail de se encontrar.
Uma cheia de dedos para tantos assuntos.
A outra, sem nenhuma digital.