quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A bailarina e o pianist


Ela andava na ponta dos pés.
Ele falava com a ponta dos dedos.
Treinavam horas à fio.
Ela, o ofício de se comunicar com o corpo.
Ele, o de tocar sem palavras.
Não se conheciam, mas quem os visse, cada um em seu lugar, jurava que estavam juntos.
Melodiavam entre bemóis e sustenidos.
Inspiravam os mesmos respiros, erravam sempre no mesmo ponto da música.
Ela no passo que não cabia o movimento.
Ele no compasso que lhe fugia das mãos.
De um lado e de outro, recitavam juntos.
E saiam exaustos de seus limites.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

sábado


Sábado você se machucou bastante e eu me feri por dentro.
A sorte é que você só tem 4 anos e nessa idade tudo cicatriza muito rápido. Já a mamãe vai precisar de um tempo maior pra se recuperar.
Enquanto você subia naquele brinquedo cheio de degraus, eu olhava de longe apreensiva. As vezes soltava um “cuidado!” “ presta atenção”, mas deixava você ir trilhando seu caminho sozinho, como acho que assim deve ser na vida.
E você, vestido de homem aranha, ia escalando o seu prédio imaginário, se dizendo o maior de todos os super heróis. Você me mostrava o quanto tinha avançado, com um orgulho de ser o único pequeno no meio dos grandões. Você é assim desde muito pequenininho: destemido.
Mas a mamãe tem muitos medos. E finge que eles não existem na hora de te incentivar.
E foi justo quando eu me distraí, que você caiu. E caiu feio, filho.
A mamãe teve que segurar o choro, a respiração, o medo e a vontade de sair correndo para te acudir. E a gente teve que se acalmar juntos, porque as surpresas da vida nem sempre são boas. Nem mesmo para o homem aranha.
1 hora depois você já estava contando pro médico tudo que tinha acontecido, mostrando seu machucado e a sua janelinha pra todo mundo. E eu ali, tentando ver esse mundo lindo e legal que você estava enxergando, apesar da dor. Mas as janelinhas só se abrem para quem tem curiosidade de ver o que tem do outro lado. E naquele momento eu só queria ver o que já conhecia, filho.
A mamãe queria muito ter segurado você antes de tudo acontecer. Eu poderia ter evitado o seu tombo, o seu choro desesperado, mas não a sua janelinha. Essa foi a primeira de muitas que vão se abrir na sua vida, Arthur. Tá certo que ela veio bem antes do tempo.
Mas assim não é você?
Você tem pressa, filho.
E tem intensidade.
A mamãe vai ter que aprender a se recuperar logo. Porque pra você, viver é urgente.
Te amo.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Alô, som?

Em todo ensaio não pode faltar o “alô, som? Testando, 1,2,3, testando.”
Porque antes de esperar o reconhecimento do seu público, o artista espera o retorno do som. Espera ser ouvido.
Algo não muito distante disso também acontece na vida.
Estamos sempre esperando um retorno.
De um investimento, de uma entrega, de uma relação.
A diferença é que não temos o ensaio para garantir nada.
É microfone na mão, câmera ligada e vai lá, campeão.
Acontece que anda cada vez mais difícil ser ouvido. 
Por si mesmo e pelo outro.
Entramos numa onda meio histérica onde cada um fala de si e opina sobre o outro que não sobra espaço para mais nada.
Diálogos vêm perdendo lugar para monólogos absolutos.
Conversas sem retorno.
Perguntas sem respostas.
Todo mundo só no gogó tentando ser percebido, nem que seja pela altura.
Poucos são os que se ouvem.
Poucos são os que escutam o que o outro tem a dizer.
Todo mundo querendo aplauso.
Mas quase ninguém sentado na plateia.

segunda-feira, 2 de março de 2015

cara ou coroa

Hoje você entrou no carro com algumas moedinhas na mão.
Achei que era pra comprar seus cards Pokemon, a sua mais nova e antiga paixão.
Mas no meio do caminho você abriu seu vidro e me disse: " só vou abrir um pouquinho, tá mamãe? Só até o próximo farol. Depois eu vou fechar."
Eu te perguntei porque e você foi logo me respondendo:" porque naquele farol sempre tem um moço na cadeira de rodas e eu quero dar essas moedinhas pra ele. Ele precisa mais do que eu, não é mamãe?"
Eu fiquei num misto de alegria e orgulho de você, meu filho. Aquela alegria silenciosa que faz a gente ter uma pontinha de certeza de está indo pelo caminho certo.
Hoje você não abriu só uma fresta na janela. Você se abriu para a vida.
E isso não tem volta, filho.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Meia noite em São Paulo

Você costuma aparecer do nada no meio da noite e pular na nossa cama.
Assim, sem nem avisar. A gente acorda no susto e a reação nem sempre é boa, meu filho. Porque não é porque somos pai e mãe que temos que engolir nossa raiva e estarmos sempre prontos pra te atender.
As vezes a reação vai no ímpeto mesmo e, ao invés do acolhimento que você busca, encontra uma palavra vestida de grito.
Também já aconteceu de você passar com a roda da sua bicicleta em cima do meu pé e eu ter que segurar a minha mão pra não revidar a dor. É ação e reação, filho. Você ainda vai aprender um dia em suas aulas de física.
E eu juro que me seguro bastante para não ser eu a te ensinar na prática.
Ontem, depois do susto, tentei conversar direito com você, mas você ficou chateado e não quis muito papo. Então, o que não ficou dito virou diálogo dentro da minha cabeça e não me deixou dormir por algumas boas horas. Sempre acontece assim.
São nessas horas que fico tentando entender como é essa coisa toda de educar alguém. Não é muito fácil preencher nossas folhas em branco, sabe?
Ainda mais no escuro da noite.
Eu não sei se você reparou (mas eu tenho quase certeza que sim) que a mamãe tem um sério problema com sono. E se durante o dia já é difícil pra mim segurar o instinto, de noite é quase impossível, filho. Me desculpe.
Sei que você é só uma criança de 6 anos tentando fugir dos seus medos. Mas eu sou só uma mãe de 37 tentando fugir deles também.
Que tal se a gente se chegar de mansinho pra não acordá-los?
Não sou muito boa nos sobressaltos, sabe? Nesses momentos, a mamãe costuma reagir sem pensar e vira o próprio monstro que ora habita seus sonhos.
Fico pensando se seria melhor eu não te contar essas coisas e não dividir as minhas dificuldades com você. Mas a mamãe não costuma fingir nas relações. Com você não poderia ser diferente, não é?
É bom que você saiba que sempre que se sentem ameaçadas, as pessoas reagem, filho. E que a mamãe se sente muito mal de, muitas vezes, não conseguir se controlar.
O que acha da gente se chegar devagarinho para não acordar nossos monstros?
Prometo seguir dividindo minhas dificuldades com você e te ajudar nas suas?
O que acha de me ajudar com as minhas também?


Um beijo cheio de sono.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Arritmia

É falsa a ideia de que o coração pode bater mais forte.
De que o corpo pode tremer e o ar faltar.
De que no encontro do nosso rio com o mar nada mude ou nenhum Ph se altere.
É falsa a ideia de que borboletas podem voar sem que terremotos aconteçam dentro da gente.
Pequenos tsunamis que passam levando tudo, deixando mole só a perna.
De que pode se sentir frio com o verão que faz lá fora e se aquecer só com um “não demora?”
É falsa a ideia de que consegue-se falar tudo com o coração na boca. Quando o coração bate, nem sempre o papo revida. É preciso saber apanhar.
De que no encontro de peles é o arrepio quem manda.
De que tudo pode ser dito no silêncio. Pode mesmo?
Daí vem você com essa arritmia toda revirando as verdades.

Vem você com essa bateria no peito para me lembrar que não importa se falta o ar, se sobra ritmo. É sempre carnaval dentro de mim.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Vai!

Vai, me diz que aguenta e que o seu coração é um loft com vista para o mar.
Vai, deita em sua rede e me deixa ir e vir com você.
Quero entrar na sua realidade e ver como a vida te fantasia.
Vai e diz logo como você se sente e em qual cadeira posso me sentar.
O tempo anda passando rápido demais e a saudade caminha devagar pelos meus becos.
Saudade é sintoma dentro de mim.
Olha lá, tem um letreiro aceso com algumas letras apagadas.
Me ajuda a trocar?
Porque saudade não é algo que se apague assim tão fácil.
Vai, pega na minha mão que ainda não sei como andar por você no escuro.
Quem sabe se você me guiar a gente consiga desenvolver o tato que te falta?
Vai, mas volta. Feito ioiô indeciso em dia de festa.
Só não prometo me enrolar no seu novelo.

Porque sou canhota demais para tricotar as suas conclusões.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

um talvez não é um nunca

Talvez se você se desarmasse, seria mais leve o encontro.
E você não cairia tão fácil nos seus próprios tropeços.
As palavras não sairiam cheias de aspas e eu entenderia mais fácil.
Talvez se você se desarmasse e eu te amasse, a gente nem precisaria de palavras pra se entender.
Nas costas, só as asas para irmos longe.
Mas hoje me pesam as palavras engolidas com café bem quente que é pra ver se não se sente.
Talvez se você se desarmasse, sentaríamos no alpendre do peito dividindo uma tarde de histórias. Estaríamos em casa.
E em casa, só a roupa do corpo e nada mais.
Mas a sua mochila tem bagagem amanhecida, com cheiro de livro que não se abre.
E sempre que tento chegar mais, minha rinite ataca.
É assim que me sobra o allegra e te falta a alegria.
Talvez se você se desarmasse e eu te amasse e a roupa secasse e a rinite passasse e a conversa fluísse, eu conseguiria ouvir o que a sua cabeça venta.
Só talvez.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

ah, aquele abraço

Hoje, ali no elevador, vocês se abraçaram.
E, se para os olhos dos outros verem irmãos se abraçando é lindo, imagine para nós, seus pais. É carinho devagarinho, beijo no lado de dentro do umbigo, sabe?
No meio do abraço descompromissado de vocês, ouvi seu irmão dizer que ia sempre cuidar de você, que ele sempre estaria lá.
Isso foi como aprender uma oração nova pra mim. Eu que tenho rezado tão pouco ultimamente, logo me lembrei o motivo.
Estamos passando muito, muito tempo juntos, filhos.

E é no abraço de vocês que eu me sinto protegida.