quinta-feira, 28 de agosto de 2014

coisa oca

De repente as letras perderam o som e lá de longe alguém falava.
Mas eu só conseguia ouvir o eco de tudo que eu sentia.
Eu só conseguia sentir a dor da não voz pulsando em mim.
Queria me ler em braile, me desenhar em palavras, fazer música só para completar os espaços vazios. Mas de repente fiquei oca de tanto sentir.
E sentimento em excesso transborda.
E eu nem tive tempo de me transbordar em você.
Sai recolhendo pedaços de palavras, costurando sentidos, procurando vogais. Onde estão todas elas justo agora?
Eu só queria te guardar.
Te resumir em uma palavra e traduzir para todas as línguas.
Queria te adesivar em mim até você me colar de novo.
Roubar suas vogais, juntar com as minhas e fazer sentido.
Eu só queria um molho para as minhas consoantes.
Queria meus acentos de volta.

Queria você respirando em mim.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

por onde anda a dignidade?

O vírus pegou ela de jeito.
Se isso era ter gripe, nunca tinha pego uma em seus 36 anos.
Saiu de uma reunião e foi direto pro ps.
Tomou injeção, fez inalação, conheceu o mundo cão.
Voltou pra casa e se escondeu no quarto de brinquedos. Quanta ingenuidade... Achar que podia se refugiar dos filhos no quarto mais divertido da casa.
Eles a encontraram sem condições de diálogo.
O menor queria brincar de cards pokemon. O maior, contar sobre a aula de inglês.
Ela só queria emendar um sono no outro, quem sabe assim recuperaria os 6 anos sem dormir.
Saíram brincando de pega-pega e bateram a porta.
A maçaneta caiu.
A mamãe entrou em sono profundo.
Acordou 2 horas depois e ninguém em casa.
A bexiga gritava os quase 2 litros que ela tinha bebido para afogar o vírus.
Levantou para resolver o problema.
Lembrou que estava trancada.
A maçaneta não encaixava. Olhou para os lados à procura de um alento.
Encontrou a sacola da farmácia.
Aliviou-se como nunca. Sorriu da situação.
Deu um nó bem dado.
Repousaram instantaneamente: ela e a sacola.
Resolveu olhar para o lado antes de dormir.

A sacola estava furada.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

amor de insulfilm

Ele sofria, mas também não era bem assim.
Se angustiava com as possibilidades do “e se” mas vivia com a intensidade do “vamos agora”.
Colocava insulfilm na ansiedade para ver se, assim, ela se desapercebia.
Viver o que sentia era um troço meio contraditório.
Mas ele quase se acostumava com isso.
Se equilibrava entre o querer e o não poder. Era assim todos os dias.
Acordava com o não poder à flor da pele e ia dormir com a insônia do querer.
E insônia de querer é coisa que mexe com a gente.
E acordar mexido é bagunça difícil de se encontrar.
Mas tem coisa melhor que bagunçar-se?
Então ele deixou a escolha de lado e ocupou-se de viver.
As dúvidas, as incertezas, as vontades.
Era melhor quando se entregava.
Sabia bem disso.
Então mergulhou, molhou o cabelo e voltou para a superfície.

Ele também se afundava no raso.

sábado, 16 de agosto de 2014

Qual a cor da sua raiva?



Estamos aprendendo a lidar com a sua raiva, filho.
Você com a vontade que tem de colocar tudo pra fora desse jeito tão agressivo e eu, de engolir tudo que você sente até não sobrar dor alguma, só sorrisos soltos.
Hoje aprendemos juntos que a raiva pode trazer cicatrizes no rosto, mas que a mais profunda delas fica dentro da gente. Não é?
Tenho aprendido tanto.
Me vejo nos seus olhos. Como se você tivesse um espelho que me mostrasse o tempo todo de onde você me veio.
Te coloco no meu colo tentando ninar seus sentimentos, mas esqueço que você é feito dessa intensidade toda.
E intensidade a gente não acalma.
O que fazer com tudo isso que você sente?
Tenho aprendido que escrever ajuda.
Acontece que suas letras ainda estão aprendendo a se colar antes de saírem soltas pelo mundo.
Já as minhas vivem em ebulição.
Você vai encontrar logo o seu jeito, não é filho?
Mas enquanto ele não aparece, o que acha de juntos desenharmos a cara que a sua raiva tem?
Ela mora na caverna do grito?
No lago borbulhante?
É vermelha?
Tem mais bocas do que olhos?
É forte ou fraca?
Que gosto ela tem?
Estou adorando essa nossa brincadeira.
Coisa boa é transformar dificuldade em diversão. Vamos fazer isso mais vezes?
Coisa boa é aprender junto, filho.
E sabe de outra coisa?
Colocar sua raiva no papel é um jeito legal de olhar pra ela de fora de você. E quando a gente olha de fora, as coisas ficam menores. Até ELA.
Então vamos fazer um combinado?
Sempre que ela aparecer, vamos colocar pra fora desse jeito.
Numa coisa você vai concordar comigo: ela fica bem mais bonita no desenho do que no rosto do amiguinho, não acha?





terça-feira, 5 de agosto de 2014

em tempo!

O tempo anestesia.
E deixa tudo meio suspenso.
Um pensamento nublado à espera de dias de sol.
Saudade acolhida.
Ferida diluída pelas voltas que o relógio dá.
O tempo faz de mim creme brulé.
Tece casquinhas finas e delicadas à espreita do toc toc da colher.
E quando ela me encontra, ahhhhh...

Me derreto toda.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

e que nome tem isso?

“Você não combina com tristeza”, ouvi logo que entrei na sala.
E a resposta veio em forma de sorriso largo e volumoso.
Mas não era tristeza o que eu sentia.
Também não era essa felicidade sem nome que as vezes invade a gente.
Eu tentei dizer o que era e a língua ficou presa bem no meio do sentimento.
Como chama essa coisa que se sente mas não tem forma?
Essa coisa que faz um ninho bem no meio da gente?
Uma segunda-feira com vontade de ser sexta?
Ela foi embora. E eu fiquei aqui matutando...
E foi logo depois da afirmação que entrei aqui dentro para olhar bem de perto.
Ela tem gosto de vermelho misturado com azul royal.
Tem cheiro cítrico como quem tem vontade de sair aprontando.
E quando a gente pega na mão, puf, vira nuvem com formato de novelo.
Eta coisa difícil de entender.
Que nome tem isso            que me causa uma expressão de tristeza mesmo sorrindo por dentro?
Pensei por horas (mentira, mentira, por que insisto em ser tão exagerada?) e não me vinha um nome que fosse.
Queria poder cutucar ela e dizer: já sei, menina. O sentimento com cara de tristeza, que se parece com felicidade e tem gosto da balinha mais gostosa do pacote tem nome de baile de gala.
Mas como o nome não vem, me encarrego de sentir. E me expressar do jeito que ele assim mandar.
Mas vem cá, deixa eu confessar:
Saber que eu não combino com tristeza me ganhou.
E me fez sentir uma coisa que conheço bem.

E que tem nome. Viva!