terça-feira, 20 de junho de 2017

A praticidade da dor

"A praticidade da dor"
Você recebe uma notícia difícil de escutar.
Ela ecoa dentro de você causando um tsunami de dor.
Automaticamente toda a água do seu corpo se junta formando ondas de choro que sobem até desaguarem no globo ocular.
Os pensamentos se juntam todos num mesmo lugar, num vídeo-case da sua vida passado num telão que se abre bem na sua frente. Tudo isso em 2 segundos.
Daí você tenta segurar a pressão, equilibrar aquela gota concentrada de tristeza e ela vai recuando, queimando todo o caminho da volta.
Você precisa pensar no próximo passo.
Precisa marcar exames.
Precisa avisar a família.
Reativar contatos.
Cuidar dos trâmites.
Fazer escolhas.
O mundo pede praticidade enquanto você só queria sentar ali no cantinho e chorar.
Tomar um banho de sal grosso fabricado por você.
Relembrar os momentos.
Pensar no “onde foi que eu errei” mesmo não havendo erro algum.
Mas não há tempo.
O resultado tem pressa.
A realidade não espera.
Mas a dor é lenta.
É difícil ser prático quando a alma pede um pouco de burocracia.
Então você se anestesia e resolve, liga, escuta.
O sofrer fica para depois.
Ou não.
Ele vira saudade.

Madrugada


Você costuma aparecer do nada no meio da noite e pular na nossa cama.
Assim, sem nem avisar. A gente acorda no susto e a reação nem sempre é boa, meu filho. Porque não é porque somos pai e mãe que temos que engolir nossa raiva e estarmos sempre prontos pra te atender.
As vezes a reação vai no ímpeto mesmo e, ao invés do acolhimento que você busca, encontra uma palavra vestida de grito.
Também já aconteceu de você passar com a roda da sua bicicleta em cima do meu pé e eu ter que segurar a minha mão pra não revidar a dor. É ação e reação, filho. Você ainda vai aprender um dia em suas aulas de física.
E eu juro que me seguro bastante para não ser eu a te ensinar na prática.
Ontem, depois do susto, tentei conversar direito com você, mas você ficou chateado e não quis muito papo. Então, o que não ficou dito virou diálogo dentro da minha cabeça e não me deixou dormir por algumas boas horas. Sempre acontece assim.
São nessas horas que fico tentando entender como é essa coisa toda de educar alguém. Não é muito fácil preencher nossas folhas em branco, sabe?
Ainda mais no escuro da noite.
Eu não sei se você reparou (mas eu tenho quase certeza que sim) que a mamãe tem um sério problema com sono. E se durante o dia já é difícil pra mim segurar o instinto, de noite é quase impossível, filho. Me desculpe.
Sei que você é só uma criança de 6 anos tentando fugir dos seus medos. Mas eu sou só uma mãe de 37 tentando fugir dos meus também.
Que tal se a gente se chegar de mansinho pra não acordá-los?
Não sou muito boa nos sobressaltos, sabe? Nesses momentos, a mamãe costuma reagir sem pensar e vira o próprio monstro que ora habita seus sonhos.
Fico pensando se seria melhor eu não te contar essas coisas e não dividir as minhas dificuldades com você. Mas a mamãe não costuma fingir nas relações. Com você não poderia ser diferente, não é?
É bom que você saiba que sempre que se sentem ameaçadas, as pessoas reagem, filho. E que a mamãe se sente muito mal de, muitas vezes, não conseguir se controlar.
O que acha da gente se chegar devagarinho para não acordar nossos monstros?
Prometo seguir dividindo minhas dificuldades com você e te ajudar nas suas?
O que acha de me ajudar com as minhas também?
Um beijo cheio de sono.

Ha 4 anos ele perdeu um dos olhos. Mas nunca o olhar.

Seus olhos são verdes.
Verdes e tão vivos...
E já viram muita coisa.
A fome na fazenda, a fartura do cerrado.
As letras que se desenhavam no papel preso na máquina de escrever.
Viram a guerrilha de perto. A tortura na pele.
O amigo desaparecido.
A família que se foi aos poucos.
Um casamento, dois filhos.
O brilho encobrindo a cena.
Sempre olharam pro futuro, os seus olhos.
Tão cheios de olhar, os seus olhos.
Tão cheios de vida.
Quando eu era bem pequena, me lembro de pedir pra gente trocar.
Pra eu ter um olho verde e outro marrom.
Pra você ter outro par assim também.
Pra gente ser igual, pra eu ter o seu jeito de olhar.
O seu desenrolar.
Os seus olhos verdes resolveram se separar.
E um deles foi morar em outro lugar.
Mas o que eles viram juntos, está la.
Os seus olhos verdes continuam no plural.
Mas hoje um está verde e outro marrom.
Assim como os meus.
É só olhar.

Ubergato

A gente se conheceu num desses aplicativos. Uau, como era lindo! Combinamos um encontro e ele apareceu pra me pegar quase que sem nenhum atraso. 
Abriu a porta do carro pra mim. Perguntou se eu estava bem e como tinha sido meu dia.
Depois, quis saber se a temperatura do ar estava boa. Que homem pergunta isso, meu Deus? Eu só respondia que sim. O danado sabia que era bonito. E eu sabia que ele sabia que tinha me deixado sem reação.
O trânsito tava parado. Que coisa boa. Iria até Goiânia com ele, meu amô.
Foi então que depois de 15 minutos, chegamos.
Ele me desejou boa noite e eu desejei ter a sorte de encontrá-lo mais vezes.
Poderia fácil ter sido um date. Mas era só um uber gato.
Fiz a única coisa que seria possível naquele momento: lasquei 5 estrelas nele e entrei feliz da vida em casa.

Falta quanto para você se aposentar?


Tem gente que já sai da faculdade aposentado.
Outros, nem chegam a entrar. Porque foram aposentados pela adolescência.
Alguns se aposentam pelo tempo de trabalho e, mesmo assim, continuam na ativa para a cabeça não parar.
Tem os que se aposentam por uma situação da vida, por um período determinado ou sem nem perceber.
Aposentado aos 18, aos 30, por invalidez de pensamentos.
Aquela preguiça que chega, se instala e acha que encontrou a casa certa, com vista para pequenos problemas e com um bom controle remoto de decisões sempre à mão.
Esse ano eu me vi aposentada aos 35. Não pela falta de vontade, mas pelo excesso da falta.
E, mais do que rapidamente, vi também que era hora de voltar. Recolhi alguns sonhos, alguns projetos espalhados pelo chão, umas vontades que nem chegaram a ser e bati na porta da vida.
Porque, para mim, aposentadoria não é questão de idade.
É de vontade.
Você pode se aposentar aos finais de semana, entre um trabalho e outro, em uma manhã preguiçosa ou tarde da noite.
Você pode se aposentar de uma situação, de uma pessoa e até de um sentimento.
Mas não dá pra se aposentar de você mesma.
Nem aos 18, aos 35 ou aos 100.

Fluência

Falo inglês como quem procura letras no teclado.
Pequenos encontros sonoros. Reações químicas que provocam significados.
Falo inglês como quem tira uma música de ouvido no piano.
Frase a frase vou construindo a minha melodia.
No meu tempo.
Com o meu respiro.
As palavras têm tradução simultânea dentro de mim.
E gosto da maneira como elas se combinam quando eu escrevo.
Falando é diferente.
Elas se perdem, se enroscam, procuram abrigo.
As minhas palavras não têm voz.
Sobrevivem de texturas.
De toques.
O meu inglês foi viver fora.
E levou o meu português junto.
Lá eles se entendem.
Ou convivem bem com o silêncio de cada um.
Por aqui, fico com as palavras que reverberam dentro de cada um.
Nesta língua eu sou fluente.
E tenho voz.

Manchester

Filhos,
Faz 23 dias que a mamãe saiu de casa para se sentir novamente em casa. O inglês foi a grande desculpa. Dessa vez eu precisava por a culpa em algo que não fosse em mim mesma.
Enfrentei meus medos, enfrentei minhas inseguranças e todos os desconhecidos que existiam aqui dentro. E fui.
Desde que a mamãe e o papai se casaram e vocês nasceram, não ficava sozinha só com o barulho dos pensamentos.
Passar 20 dias na casa de quem a gente não conhece é como passar a vida toda não sabendo quem a gente é.
É preciso intimidade para se viver junto.
É preciso coragem para se olhar.
E a mamãe juntou cada tantinho de coragem que existia dentro dela para acender algumas luzinhas.
Fiz isso por mim, mas também por vocês, filhos.
Para que vocês cresçam sabendo que mais importante que a altura é o tamanho que a gente alcança aqui dentro.
Para que vocês percebam a importância de se dar importância.
Para que vocês entendam que nenhum barulho lá fora pode calar a voz que existe dentro da gente.
E que por mais que vocês sejam fluente em algum idioma, nenhuma fluência vai ser maior do que a que a gente ganha quando se conhece.
Mamãe está de volta, amores.
Estamos finalmente em casa.

Pontuando a vida

As vezes me pego olhando para fora, descrevendo as pessoas que me cruzam os caminhos.
Gosto de analisá-las pela forma de andar, de falar, de olhar. O vestir não faz parte da minha observação. Deixo este ponto à mercê da moda. Ao meu ver, o vestir define um momento, não a essência. E aqui estamos falando de ser e não do estar, certo?
Mas minha análise não é aquela de terapeuta tentando encontrar o ápice do fim de uma sessão.
Não, não.
Minha análise é quase visceral.
Eu gosto de gente. Sempre disse isso.
E gosto da diversidade.
Amo o olhar desafiador de quem é de exclamação. Dos que são intensos e estão sempre prontos para o abismo. Não importa de qual jeito voltarão para a superfície.
Me acalmo com quem é de reticências. Dos que deslizam sobre a vida sem se preocupar com as decisões. Dos que se entregam ao momento como quem degusta uma boa taça de vinho.
Já os de interrogação não me causam mistério. A insegurança até tem o seu charme mas, em excesso, me engorda a frustração. Isso é um veneno para quem vive de dieta. Você bem sabe, eu sei. Detox neles.
Gente ponto final não nos dá chance de novas descobertas. É o senhor da razão e não é lá muito chegado ao diálogo. Esses, eu só escuto.
Gente virgula. Já conheceu alguém assim? Eu já. Você também, é só reparar. São ansiosos, atropelados, desajeitados. Mas total do bem. É só cobrança em acertar, sempre. E acabam errando bem no lugar da vírgula. Um horror para os entendidos do assunto. Uma alegria para os que são parênteses na vida.
Tem também os que são aspas. Grudam na opinião do outro e só largam quando encontram outra melhor.
Os de travessão vivem mais na infância. Adoram entrar de supetão no assunto do outro sem nem esperar pela sua vez. Se bem que tem muita gente dessa espécie por aé. E sabe onde eles mais aparecem? Nas salas de reunião. Bote reparo você também.
Gosto de observar porque assim consigo me enxergar melhor.
Sou um pouco de exclamação, de interrogação, de ponto final.
Já fui mais travessão, mas aprendi com os de reticências a pensar melhor.
E hoje, ando fazendo as pazes com as minhas aspas.

Dividindo a vida

Sabe, filho.
Hoje de manhã, enquanto te ajudava a se arrumar, tive muita vontade de te contar sobre as minhas dúvidas, falar sobre os meus medos e aflições.
Sinto que você é um bom ouvinte, filho. E é com você que, muitas vezes, tenho vontade de me abrir.
Mas foi penteando o seu cabelo que me dei conta de que você só tem 8 anos e que as minhas incertezas podem te trazer ainda mais inseguranças. As minhas questões podem esperar. Mas o momento de construir um banquinho firme onde você possa se sentar e respirar paz é agora.
E agora tá difícil, filho.
Porque quem estava com você hoje de manhã era a filha e não a mãe.
E quando ela resolve aparecer pedindo colo tudo fica mais pesado.
Quem sabe vocês não possam se encontrar e dividir alguns segredos?
Quem sabe vocês possam brincar de roda enquanto eu rodopio nas minhas incertezas?
Vocês seriam bons amigos.
Você com a sua maturidade precoce e ela com a sua infantilidade madura.
Dariam uma bela dupla.
Assim como a gente, filho.
É gostoso ver vocês juntos. Podem brincar, eu espero. Brinquem pela vida.
Quando chegar o momento, a gente senta no seu banquinho e conversa. Sobre você, sobre mim, sobre nós.
Sempre serei esse banquinho pra você.
E acredite, filho, já faz tempo que você é o meu.

Descartáveis

Ficou na borda o batom que inspirou a música.
O restinho do recheio do bolo de chocolate que pôs fim à promessa.
Ficaram cheios do resto que preencheu a noite.
Empilhados em um cantinho qualquer esperando sua nova vez.
Transparentes, opacos, estampados do outro.
Nasceram descartáveis e assim eram.
Duravam o tempo de uma festa.
Estavam com o tempo contado. Sempre foi assim.
Mas não pra ela, que nunca tinha se visto nessa (e dessa) posição.
Ela que estava acostumada ao bem querer e ao bem se ter.
Ela que falava olhando nos olhos, que sorria com as mãos que apertavam outras em um abraço de dedos.
A menina que não economizava palavras, gestos e nem emoções.
A menina que não se economizava.
Que não era de plástico e nunca tinha estado neste papel,
se sentiu descartável.
Vazia.
Tentou se empilhar como os outros.
Mas não conseguiu.
Ela que não cabia em si não caberia ali.
Continuava acreditando nas palavras, nos olhares, no cuidado.
No calor de um encontro.
Na vida acontecendo ao vivo.
A menina que não se economizava precisava de mais. Bem mais.
Recolheu os copos, juntou os pratinhos e foi ser festa em outro lugar.

Vai que dá?


O costume chega devagar e vai se acostumando. E sabe o que? A gente nem percebe. Vira costume tomar o café da manhã antes do banho. Passar o desodorante antes e o creme depois. Chamar o elevador e, enquanto ele não vem, lembrar do casaco. Vira costume se maquiar no trânsito. Chegar no trabalho, ligar o computador e, enquanto a tela não aparece, buscar o café. Resolver pendências na hora do almoço. Deixar a academia só para quando o botão da calça não fechar. Tem costume que é bom e eu gosto. Um café quentinho de tarde com um bolo de fubá. Um “trem” no meio da frase só para situar. O “eu te amo” quase antes de desligar. Mas alguns outros nem é bom lembrar. Quando o costume vira costume e se esquece de variar. De elogiar. De mudar. Só de costume, é bom reparar. Vai que dá pra desacostumar.

Uma questão de pele

O assunto começou quando ela puxou a pelinha do lado do dedo, aquelas que ficam levantadas avisando a gente que está passando da hora de fazer as unhas.
É impressionante como está sempre na hora de alguma coisa. De se cuidar, de encarar o regime, de dar um basta no emprego ou naquele caso que se prorroga há anos e não marca um gol. A gente tem que ser mulher, mãe, amiga, namorada, amante, esposa, dona de casa, estar com o cabelo e a unha impecáveis a ponto de não ter nenhuma pelinha levantando e gritando com a gente.
Então ela puxou com cuidado porque sabia que aquilo doía e era uma operação de risco. Mas não adiantou. Logo veio o sangue para lembrar que as mulheres sangram mesmo, muitas vezes bem mais do que uma única vez por mês.
E a pelinha que levou ao sangue que a fez lembrar do seu período fértil trouxe ele de volta. E ela estava ali dando uma volta em si mesma quando soltou, do nada, no meio do almoço em um bar qualquer, com o campeonato italiano correndo solto na tela: “ o segredo de tudo é a pele.”
De repente todo mundo parou, o copo ficou entre a boca e o susto, as meninas se olharam, os homens olharam pro lado e depois pra tela e ela ficou com o dedo ainda na boca, tentando disfarçar o que a memória já tinha causado nos pelos arrepiados do braço.
Eles voltaram para o jogo e ela não tinha como fugir do que disse. As vezes é assim que acontece. No meio do nada, uma palavra do nada, num lugar que nem serve de moldura pra cena. Mas você está ali por inteiro em suas memórias e elas ganham vida e se transformam em prosa.
E foi ali mesmo, naquela mesa ao som do futebol, que ela contou a sua história de pele. De como tinham se conhecido, de como tinham se encontrado no meio da sala ao som de um forró. Ela que não gostava de forró e ele que não sabia dançar.
Do toque imediato que resultou numa dança ritmada e sensual.
De como os rostos se encontraram, os olhos disseram sim e em menos de 5 minutos se agarravam na dispensa criando uma festa única e particular.
De como amanheceu e eles nem perceberam. De como passaram-se 3 meses e eles continuavam dançando.
De como viviam nú um para o outro, vestidos de pele e sensações.
Ela cercada de olhos curiosos, revivendo cada passo desde aquela noite.
Contando os detalhes porque eram neles que ela morava.
De como a partir daquele dia passou a cuidar melhor da sua pele porque ela era capaz de milagres.
Todas elas sabiam do que a amiga estava contando.
Todas sabiam exatamente que era assim
Uma história massageando outra.
Porque, as vezes, ela só precisa de um narrador para acontecer de novo.
Ou de uma pelinha levantada que nos leve até la.

Briga interna

Eles brigaram. Feio.
Foi nivel rolar no chão dando soco na cara.
Eu nao estava.
Mas a história entrou pela porta com a mão no rosto e o olhar assustado.
Contaram juntos. Cada um a sua versão.
Falava mais alto quem achava que tinha mais razão.
As lágrimas molhavam a voz e deixavam tudo ainda mais confuso.
Entendi que um contou a historia de um medroso e 3 corajosos. E o outro se viu como personagem e criou coragem para atacar. A raiva foi tão grande que não conseguiu se controlar, ele disse.
Então eu ataquei. Dei duas palmadas naquele que bateu e gritei com o que acusou.
Disse que não devíamos expor a dificuldade dos outros e sim ajudar. Disse que devíamos nos controlar ao invés de atacar.
E o que foi que eu fiz? Exatamente como eles.
Então sai atrasada ( e arrasada) para um curso sobre como ser um bom líder. Que ironia, não?
Não podia ter tido dia melhor pra isso.
Pensava o tempo todo no tipo de liderança que eu exercia em casa, no tipo de exemplo que eu estava dando.
Ok, fiz o melhor que pude depois de vê-los chegar em casa naquele estado.
Fiquei brava, raivosa, mas também peguei no colo, expliquei e os fiz se colocarem um no lugar do outro.
Eles se abraçaram, choraram e se perdoaram na hora.
Ja eu levei as 3 horas para conseguir fazer isso comigo.
Queria ter o poder cicatrizante de uma criança.

Os dois lados

Um lado. 
Era o seu primeiro dia de férias.
Ela tinha sigo pega de surpresa com relação à isso. Férias pra ela sempre foi sinônimo de programação e viagens, mas nunca de descanso.
Engraçado como sempre costumava voltar com aquele cansaço típico de quem aproveita cada segundo olhando, absorvendo, fazendo.
Mas desta vez seria diferente. Um dia antes ela tinha pedido mais espontaneidade da vida. E a resposta veio em forma de férias desprogramadas.
Então, em seu primeiro dia, resolveu fazer o que sempre teve vontade, mas a culpa, o olhar do outro, a reprovação interna não deixava.
Foi com as crianças e a babá ao parque.
Isso ela já tinha feito milhões de vezes. Não era novidade nenhuma.
Mas deixá-los no parquinho e correr sozinha, ah, isso sim era bem novo pra ela. Mãe tinha que estar sempre por perto, empurrar carrinho, brincar no parquinho.
Mas no seu primeiro dia de férias inesperadas resolveu deixar o desconhecido mandar.
Colocou o fone, alongou-se de vontade e correu.
Sentiu o vento, as folhas caindo, olhou para o céu.
E viu o momento exato em que o sol deixou a timidez de lado e a convidou para mais uma volta.
Sem culpa, sem medo, sem hora marcada.
O outro.
Todas as manhãs ela o levava ao parquinho.
Na mochila, o suco que ela mesma fazia minutos antes de sair.
Nas costas, o peso do tipo de maternidade que escolheu seguir.
Estava atrasada 15 minutos aquele dia. Chegava sempre as 9h30, brincavam no mesmo lugar, encontrava as mesmas pessoas.
Enquanto preenchia o vazio das horas, se programava para daqui um tempo, dedicar um tempo a ela. Daqui uns 6 meses, quem sabe.
Aquele dia encontrou crianças diferentes no balanço. Procurou pela mãe e encontrou a babá.
Pensou que a mãe podia estar no escorregador com um outro filho ou sentada no banco.
Olhou e não encontrou.
Se indignou. E ficou pensando no que faz uma mãe, naquele horário, deixar os filhos no parquinho só com a babá.
Se perdeu em seus pensamentos e, sem querer, deixou o filho solto para explorar outros cantinhos do parquinho de sempre.
Vai ver eles não têm mãe, ou ela trabalha ou está viajando.
Vai ver é o tipo de mãe que não se culpa por nada ou que faz isso todos os dias, inclusive aos finais de semana. Vai saber.
O filho comeu areia, bebeu água do copo do amiguinho, engatinhou na lama. Se encheu de infância enquanto ela tentava justificar seu excesso na possível falta do outro.
Viu quando ela passou correndo e os filhos a chamaram.
Viu quando ela deixou os passos largos para os abraços apertados.
Nem imaginava que aquele era o primeiro dia das férias desprogramadas dela.
Mas ela sabia. Teve que correr muito para chegar até ali.

A criação e o não


Filho,
Semana passada a mamãe ouviu de um professor que a gente conhece uma pessoa não só quando dá poder a ela. Mas também quando a frustra.
E não é que ele tem razão?
A gente frustra alguém quando, na maioria das vezes, lhe diz não. Você conhece bem o poder dessa palavra, não é? Ela fica ainda mais fresquinha no coração depois de um final de semana intenso como os nossos.
O não é uma vacina sofrida de dar, filho. Mas necessária. Ele ensina, põe limites, ajuda a criar resistência.
Tão diferente do sim, não é? O sim já vem, naturalmente, acompanhado de um sorriso. Já parou pra falar um sim olhando para o espelho? O sim contagia. É uma explosão de alegria dentro da gente. Mas ele só tem essa força tão grande porque existe a força contrária do não. São os famosos opostos que a gente já falou tantas vezes.
Mas o não não mora somente nos finais de semana. E muito menos só na vida das crianças. Alias, vou te contar um segredo. Quanto mais cedo a gente conhecer ele, menor é o poder que ele pode exercer sobre a gente, filho.
Ouvir não é difícil pra caramba.
Como pode uma palavra tão pequena virar um muro de concreto bem na sua frente?
Não sei. Só sei que ontem ele veio cercar a minha terça-feira.
Só que antes, tinha aparecido também na quinta.
Ele costuma aparecer bastante, sabe?
Difícil imaginar que ideias boas também ganham seus nãos.
Mas acredite: isso acontece.
Da vontade de bater o pé igual você faz? Ô se dá.
Da vontade de chorar e dizer que não é justo? Também.
Mas nessas horas, filho, se a gente não cuida, volta a ter as mesmas reações de quando tinha 5 anos (as vezes a mamãe até tem, só que escondida no banheiro. Shiiiiu) E o mundo aqui fora cobra da gente maturidade para o não.
E como é que a gente consegue isso?
Praticando, ouvindo, entendendo.
O não faz parte de toda criação.
Seja ai em casa ou aqui no trabalho.
Dá uma raiva danada, eu sei. Mas faz parte do nosso crescimento.
Então, vamos crescer e aprender a nos frustrar juntos, filho.
Porque junto é sempre melhor.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Dos textos que ainda me contam


Quando eu tinha 6 anos, quebrei o fêmur num balanço e fiquei 45 dias sem sair da cama. Foi aí que eu aprendi que a vida tem seus altos e baixos.
1 ano depois, comecei a fazer Ballet pra ajudar na minha recuperação. E aprendi que os altos e baixos podem ser vividos com leveza.
Quando eu tinha 15 anos fui pra Disney. E aprendi que não tem idade certa pra se divertir, que princesas não existem e que os 15 anos nunca mais voltam.
Aos 17, fui morar em São Paulo. E aprendi que não importa quantos anos você esteja longe de casa, sempre dá pra voltar.
Aos 21, aprendi que paixão não mata, bolo todo dia engorda e que não adianta tomar um engov antes se não tiver o depois.
Isso também vale para relacionamentos.
Com 25, aprendi que existe vida após a demissão. E que quando você leva um tombo também pode cair pra cima.
Aos 28, aprendi que se ganha mais quando se divide. Ainda mais se for uma vida em comum.
Com 30, aprendi a viver com o coração fora do corpo. E aos 33, vi que amor é coisa elástica e só pode fazer bem.
Aos 32, vi que não sabia muito bem o que fazer com essa tal liberdade e aprendi que ter pra onde ir e pra onde voltar me deixava livre pra voar.
Com 36, aprendi que correr ajuda a pensar devagar, que auto estima elevada e baixa auto estima são os maiores (senão os únicos) problemas do mundo e que olhar sempre pra um só lado pode acabar em torcicolo.

Regime

Segunda feira é dia de começar o meu regime emocional.
Cortar os excessos para seguir mais leve.
Dia de tirar o glúten que incha o ego. 
A preocupação que pede botox.
A ansiedade que depena as asas das borboletas que vivem no estômago.
Segunda é dia de tirar o disco da hérnia e colocar na vitrola da vida.
E dançar sem nem pensar no que os olhos comentam.
Consumir menos opiniões e mais pensamentos livres.
Diminuir a convivência com gente enlatada.
Segunda é dia de tirar o peso das regras e perder os quilos da mochila imaginária que carrego nas costas.
De fazer um detox de não, de obrigação.
Uma reeducação do que me alimenta.
Não de 3 em 3 horas. Mas o tempo todo.
Pensando bem, começar na segunda é mais uma das regras que me engordam a azia.
Melhor a poesia do agora.

Em constante reforma

A parede de tijolinho deixou aparente as nossas vontades.
Já a de concreto abriu espaço para as nossas delicadezas.
Amo quando nossas contradições se complementam.
Fazendo brotar nossas cores e história.
A porta de correr derrubou paredes e reapresentou nossos olhares.
Nossos pés agora caminham por um chão bonito, cor sim, cor não.
E a gente flutua pelos nossos sonhos.
Berinjela com amarelo com vermelho e azul.
E crianças correndo pela sala misturando tudo, bagunçando tudo, criando nossa própria paleta.
Madeira de demolição para lembrar que o perfeito não existe.
Papel de parede para nos cobrir de aconchego.
E uma banheira para nos deixar de molho, enrugando nossas ansiedades.
5 meses depois, a casa tá linda.
E a gente continua em construção.

De cabeça para baixo

Amanhecia noite lá enquanto aqui anoitecia dia.
Muitos contrários para buscar o seu lado certo.
Quem sabe de cabeça para baixo a vida não entrava nos eixos?
Era canhota, a menina. Acostumada com os contrários da vida imaginou logo se encontrar.
Se apresentou ao futuro para, então, se acomodar no passado.
E sentiu-se em casa em seu avesso.
Comida fria, bebida quente.
Guardanapo molhado.
Volante do lado direito.
Noite dia.
De cabeça para baixo, pôde tirar todos os pesos dos bolsos.
E formar novas palavras com as letras que caíram.
Foi então que ela apareceu.
Anna.
Igual, mas diferente.
Renovada.
E a menina percebeu que, mesmo ao contrário, continuava a mesma.
Era seu próprio palíndromo.

O ontem e o hoje

Cheguei em São Paulo há 19 anos.
Carregava algumas malas, meus 18 anos, um namorado de 4 e amigos de infância que ficaram 1200 km pra trás.
Não tinha celular, não tinha computador.
Tinha um telefone de gancho, mas os minutos eram caros. Bem caros.
Então a gente se correspondia por cartas. Muitas.
Contava os dias, os acontecimentos, as descobertas e falava sobre os medos. Tantos...
Eu era um diário aberto, sem nenhuma fechadura para o meu mundo particular.
Chegar em casa e abrir a caixinha do correio era um evento pra mim.
Um quentinho no coração que fazia a distância ficar menor e menor.
Os dedos ainda não doíam pela falta de habilidade na escrita de hoje.
Os diálogos saíam sem pausa porque tudo aqui acontecia muito rápido.
E eu não me economizava nos detalhes.
Retomei a minha coleção de papel de carta só para as notícias se aquecerem ainda mais.
Recheava as minhas cartas com referências que contavam mais do meu mundo novo.
A gente se trocava em letras. E segurava a ansiedade da próxima carta que demorava o tempo de um bate volta. É, o tempo era outro.
Foi então que as máquinas de escrever da faculdade deram lugar aos computadores.
Comprei o meu primeiro celular.
As redes viraram sociais.
A gente deixou de se escrever.
A gente passou a se falar bem menos.
A gente deixou os detalhes de lado e nos entregamos às urgências.
Foi então que hoje, ao abrir a caixinha do correio, encontrei um envelope escrito à mão, pra mim. ERA PRA MIM!
Ele estava lá. Com o coração acelerado, um sorriso largo e um vestido colorido de verão.
Ele estava lá, com os mesmos olhos atentos ao mundo e cheio de coisas pra contar.
Ao abrir aquela caixinha de correio, encontrei os meus 18 anos.
E ele dizia: sinto falta de você, das nossas conversas de todo dia, das nossas intensidades.
Obrigada Luciana Bracarense. Por me trazer de volta a mim.

Expectativa é caminho sem volta

O problema é que você fala e eu acredito.
Anoto na minha agenda emocional e o dia já me pertence.
Mas o seu tem sempre horas a menos, compromissos demais e uma certa vontade arrastada.
Acontece que eu não preciso marcar, assinar embaixo e carimbar para pertencer. É só encontrar um momento livre que eu já me aconchego preenchendo seus minutos.
Mas você não se compromete.
Solta possibilidades mas as recolhe, como pipa sem vento pra voar.
E eu chego cheia de linha, cheia de cor e acabo me ferindo no seu cerol.
Porque expectativa é caminho sem volta. Ou voa ou magoa.
Temos voado pouco.
Já o tempo...

A praticidade da dor

Você recebe uma notícia difícil de escutar.
Ela ecoa dentro de você causando um tsunami de dor.
Automaticamente toda a água do seu corpo se junta formando ondas de choro que sobem até desaguarem no globo ocular.
Os pensamentos se juntam todos num mesmo lugar, num vídeo-case da sua vida passado num telão que se abre bem na sua frente. Tudo isso em 2 segundos.
Daí você tenta segurar a pressão, equilibrar aquela gota concentrada de tristeza e ela vai recuando, queimando todo o caminho da volta.
Você precisa pensar no próximo passo.
Precisa marcar exames.
Precisa avisar a família.
Reativar contatos.
Cuidar dos trâmites.
Fazer escolhas.
O mundo pede praticidade enquanto você só queria sentar ali no cantinho e chorar.
Tomar um banho de sal grosso fabricado por você.
Relembrar os momentos.
Pensar no “onde foi que eu errei” mesmo não havendo erro algum.
Mas não há tempo.
O resultado tem pressa.
A realidade não espera.
Mas a dor é lenta.
É difícil ser prático quando a alma pede um pouco de burocracia.
Então você se anestesia e resolve, liga, escuta.
O sofrer fica para depois.
Ou não.
Ele vira saudade.

Sobre crescer

Criança enxerga tudo grande.
Sempre achei que meu avô era enorme. Hoje, ele bate no meu queixo. Vi que não era tão grande assim.
A minha casa tinha um salão de festas gigante, que cabiam todas as alegrias da minha festa de 10 anos.
Hoje, cabem algumas cadeiras encostadas, teias de aranha e muitas memórias.
O piano era grande demais para as minhas mãos de 6 anos. Hj, já o alcanço com apenas algumas escalas.
Tudo na vida é referência.
Ou olhar.
Quisera eu enxergar com os meus olhos de 32 anos atrás.
Quando foi que perdemos a fita métrica dos sonhos?
Quando foi que deixamos de olhar pra cima?
Procurei nas gavetas da infância.
Não foram eles que diminuíram.
Fui eu que cresci.